A saúde e seus determinantes sociais

Resenhado por Laís Almeida

Buss, P. M. & Pellegrini Filho, A. A saúde e seus determinantes sociais. Physis [online]. 2007, vol.17, n.1, pp. 77-93. ISSN 0103-7331. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73312007000100006

     O artigo “A saúde e seus determinantes sociais” se propõe a explicar o conceito de Determinantes Sociais da Saúde (DSS), apresentar sua evolução histórica, discutir a evolução dos estudos nesse campo, além de mostrar os desafios e possibilidades de intervenção para o combate às desigualdades de saúde geradas pelos DSS.
       A saúde, a nível individual ou populacional, está relacionada ao bem estar físico, mental e social e não só à ausência de doença. Os determinantes sociais de saúde (DSS) envolvem as condições de vida e de trabalho, os diversos fatores sociais, econômicos, culturais, étnicos, psicológicos e comportamentais que influenciam a ocorrência de problemas de saúde e seus fatores de risco na população. A Organização Mundial da Saúde (OMS) adota uma definição mais curta, na qual os DSS são as condições sociais em que as pessoas vivem e trabalham. A importância dada a essas condições foi crescendo com o passar do tempo e hoje já existe um consenso de que o contexto econômico e social no qual o indivíduo está inserido exerce um poder importante sobre a sua saúde. O artigo cita que Virchow considera que a ciência médica é essencialmente uma ciência social e que o termo “saúde pública” já implica que a política tem a responsabilidade de identificar e eliminar os fatores que prejudicam a saúde da população. Mas o primeiro modelo de saúde pública que predominou foi o destinado ao controle de doenças específicas, com base na bacteriologia, que se faz através do estudo dos agentes infecciosos em laboratório, só depois da Constituição da OMS, em 1948, é que o modelo atual, em que há análise das questões políticas e a criação de reformas sociais e sanitárias amplas, ganhou espaço.
      Na literatura nacional e internacional houve um grande aumento no estudo das relações entre a maneira como se organiza e se desenvolve uma sociedade e a situação da saúde de sua população. Esse avanço mostra-se marcante no que refere ao estudo das desigualdades no campo da saúde, já que as diferenças nesse quesito entre os grupos populacionais são extremamente marcantes, trágicas e que poderiam ser evitadas. O texto mostra a classificação de três gerações de estudos sobre as iniquidades em saúde, feita por Nancy Adler. A primeira geração dedicou-se a descrever as relações entre pobreza e saúde; a segunda, a descrever os níveis de saúde de acordo com vários critérios de estratificação socioeconômica; e a terceira e atual dedica-se principalmente aos estudos dos mecanismos de produção das desigualdades, ou seja, busca saber como, de fato, a condição econômico social afeta a saúde.
      O texto mostra que o principal desafio no estudo dos DSS consiste em estabelecer uma hierarquia de determinações entre os fatores mais gerais de natureza social, econômica, política e as mediações através das quais esses fatores incidem sobre a situação de saúde de grupos e pessoas, já que a relação não é simplesmente de causa e efeito. Através de uma abordagem como esta é que se pode entender os motivos para que um país apresente um PIB muito alto e sua população não tenha indicadores de saúde tão altos assim, que não atingem a expectativa de que quanto mais rico um país é, mais saúde proporciona a sua população. Do mesmo modo que além de entender, pode-se descobrir como intervir e mudar esse quadro, otimizando determinados pontos de forma que produzam mais impacto. Outro desafio citado no texto é o de distinguir os determinantes de saúde dos indivíduos e os de grupos e populações, pois fatores que explicam as diferenças no estado de saúde dos indivíduos nem sempre explicam as diferenças entre grupos de uma sociedade ou entre sociedades diversas. Os fatores individuais são importantes para identificar que indivíduos dentro de um grupo estão sujeitos a maior risco, mas as diferenças nos níveis de saúde entre grupos e países estão mais relacionadas com outros fatores, como a distribuição de renda.
     Dentre as diversas abordagens possíveis para o estudo das iniquidades de saúde provocadas pelos DSS, a primeira delas dá preferência aos “aspectos físico-materiais” na produção da saúde e da doença, no que diz respeito a relação entre renda e quantidade e qualidade de recursos, tanto para o indivíduo quanto para a comunidade. Outra abordagem possível privilegia os “fatores psicossociais” buscando as relações entre percepções de desigualdades sociais, mecanismos psicobiológicos e situação de saúde, com base na ideia de que as percepções e as experiências de pessoas em sociedades desiguais provocam estresse e prejuízos à saúde. Há também os chamados “enfoques ecossociais ou multiníveis”, os quais procuram integrar as abordagens individuais e grupais, sociais e biológicas numa perspectiva dinâmica, histórica e ecológica. Por fim, há os enfoques que buscam averiguar as relações entre a saúde das populações, as desigualdades nas condições de vida e o grau de desenvolvimento da trama de vínculos e associações entre indivíduos e grupos. Esses estudos procuram entender o desgaste do “capital social”, que consiste nas relações de solidariedade e confiança entre pessoas e grupos, cujas desigualdades impactam negativamente a situação da saúde. Esses estudos procuram mostrar que as sociedades mais igualitárias e com alta coesão social são as que alcançam os melhores níveis de saúde.
      O artigo destaca a análise de dois modelos que procuram esquematizar a trama de relações entre os diversos fatores estudados através dos enfoques já mostrados: o modelo de Dahlgren e Whitehead e o modelo de Diderichsen e outros. O primeiro aborda os DSS dispostos em diferentes camadas, desde a mais próxima do nível individual até onde se situam os macrodeterminantes. Esse modelo não tem como objetivo explicar com detalhes as relações e mediações entre os diversos níveis e a gênese das desigualdades. Na base desse modelo encontram-se os indivíduos com suas características de sexo, idade e fatores genéticos, acima dessa camada está o lugar do comportamento e estilo de vida individual, a qual marca o limiar entre os fatores individuais e os DSS, já que comportamentos muitas vezes entendidos como responsabilidade do indivíduo na verdade estão fortemente condicionados por determinantes sociais. A camada seguinte destaca a influência das redes comunitárias e de apoio, que faz da coesão social um fator determinante para os níveis de saúde. No nível acima estão representados os fatores relacionados às condições de vida e trabalho, disponibilidade de alimentos e acesso a ambientes e serviços essenciais (saúde, educação). Ele também indica que pessoas sujeitas a uma desvantagem social, por terem crescido em situações precárias ou terem sido expostas a perigo e estresse, correm um risco diferenciado. Já no último nível estão representados os macrodeterminantes relacionados às condições econômicas, culturais e ambientais da sociedade, os quais possuem grande influência sobre as demais camadas. A globalização é um fenômeno que teve uma influência muito grande sobre as condições de saúde e de vida em geral, essa influência foi analisada por Buss.
      O modelo de Diderichsen e outros dá ênfase a estratificação social gerada pelo contexto social, que confere aos indivíduos posições sociais distantes, que provocam diferenciais de saúde. No diagrama do modelo é mostrada como se relaciona fatores como o processo segundo o qual cada pessoa ocupa determinada posição social (sistema educacional e mercado de trabalho), com o grau de exposição a riscos, o diferencial de vulnerabilidade à ocorrência de doença e com o diferencial de consequências sociais ou físicas sofridas pela enfermidade.
      Ambos os modelos permitem identificar pontos em que podem ser feitas intervenções políticas com o intuito de minimizar as discrepâncias dos DSS causadas pela posição social dos indivíduos e grupos. No modelo de camadas de Dahlgren e Whitehead, o primo nível relacionado aos comportamentos e estilos de vida indica forte influência dos DSS, já que é muito difícil mudar comportamentos de risco sem que haja mudança nas normas culturais que os influenciam. Atuando diretamente sobre o indivíduo, possa ser que alguns mudem seus comportamentos, mas logo serão substituídos por outros. Para uma atuação eficaz são necessárias políticas de abrangência populacional que promovam mudanças de comportamento através de programas educativos, comunicação social, acesso facilitado a alimentos saudáveis, viabilização de práticas esportivas e proibição à propaganda de drogas lícitas, como o tabaco e o álcool. No segundo nível, que corresponde às comunidades e suas redes de relações, se incluem políticas que promovam redes de apoio e o fortalecimento da organização e participação das pessoas e das comunidades, principalmente dos grupos vulneráveis, em ações coletivas para a melhoria de suas condições de saúde e bem estar, e para que se tornem atores sociais e participantes ativos das decisões da vida social. O terceiro nível se refere à atuação das políticas sobre as condições materiais e psicossociais nas quais as pessoas vivem e trabalham, buscando assegurar acesso à água limpa, esgoto, habitação adequada, alimentos saudáveis e nutritivos, emprego seguro e  realizador, ambientes de trabalho saudáveis, serviços de saúde e de educação de qualidade e outros. Normalmente essas políticas são de responsabilidade de setores diferentes, que operam de maneira independente, mas que deve haver o estabelecimento de mecanismos que permitam uma ação integrada. O quarto nível faz referência à atuação ao nível dos macrodeterminantes, através de políticas macroeconômicas e de mercado de trabalho, de proteção ambiental e de promoção de uma cultura de paz e solidariedade que visem a promover um desenvolvimento sustentável, reduzindo as desigualdades sociais e econômicas, as violências, a degradação ambiental e seus efeitos sobre a sociedade.
      O modelo de Diderichsen et al., também permite identificar pontos para a intervenção política que atuem sobre os mecanismos de estratificação social e sobre os diferenciais de exposição, de vulnerabilidade e de suas consequências. Essa intervenção sobre os mecanismos de estratificação social é crucial para combater as iniquidades de saúde, nela se incluem políticas de combate as desigualdades sociais relacionadas ao mercado de trabalho, à educação e seguridade social, e também um acompanhamento de políticas econômicas e sociais para avaliar seu impacto e diminuir seus efeitos sobre a estratificação social.         O segundo conjunto de políticas tem como objetivo diminuir os diferenciais de exposição a riscos atuando, por exemplo, nos grupos que vivem em condições de habitação precárias, trabalham em ambientes perigosos ou estão expostos a deficiências nutricionais. Nesse conjunto se incluem também políticas de fortalecimento de redes de apoio a grupos vulneráveis para mitigar os efeitos de condições materiais e psicossociais adversas e também as que buscam fortalecer a resistência a diversas exposições contra a vulnerabilidade. A intervenção no sistema de saúde busca reduzir os diferenciais de consequências ocasionadas pela doença através da melhoria da qualidade dos serviços a toda a população, apoio a deficientes, acesso a cuidados de reabilitação e mecanismos de financiamento equitativos, que impedem o empobrecimento causado pela doença.
         Essas intervenções sobre os níveis micro, macro ou intermediário de DSS não só exigem uma atuação coordenada intersetorial em vários níveis da administração pública, como também devem estar acompanhadas por políticas mais amplas de caráter transversal que busquem fortalecer a coesão, ampliar o “capital social” das comunidades vulneráveis e promover a participação social no desenho e implementação de políticas e programas. A evolução conceitual e prática do movimento de promoção da saúde indica a importância cada vez maior que é dada aos DSS, apoiando assim a implantação das políticas e intervenções já mencionadas.
           Em 13 de março de 2006 foi implementada a Comissão Nacional sobre os Determinantes Sociais da Saúde (CNDSS), como uma resposta ao movimento global em torno dos DSS que foi desencadeado pela OMS. Seu propósito é promover uma tomada de consciência sobre a importância dos determinantes sociais na situação de saúde de indivíduos e populações e sobre a necessidade do combate às iniquidades de saúde por eles geradas. Ela está integrada por 16 personalidades expressivas da nossa vida social, cultural, científica e empresarial, como prova de que a saúde é um bem público, construído com a participação de todos os setores da sociedade. Suas atividades têm como referência o conceito de saúde da OMS e o preceito constitucional de reconhecer a saúde como um “direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos e ao acesso e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação. São três os compromissos que orientam a atuação da CNDSS: compromisso com a ação, com a equidade e com a evidência. O primeiro implica apresentar recomendações concretas de políticas, programas e intervenções para o combate às iniquidades de saúde geradas pelos DSS. O compromisso com a equidade relaciona-se ao compromisso ético que é assegurar o direito universal à saúde. E o compromisso com a evidência diz respeito a fundamentação em evidências científicas que deve haver nas recomendações da Comissão, para que se entenda como operam os determinantes sociais na geração das iniquidades em saúde, por onde devem incidir as intervenções para combatê-las e que resultados podem ser esperados em termos de efetividade e eficiência.
         Dentre os principais objetivos da CNDSS estão: produzir conhecimentos e informações sobre os DSS no Brasil; apoiar o desenvolvimento de políticas e programas para a promoção da equidade em saúde e promover atividades de mobilização da sociedade civil para tomada de consciência e atuação sobre os DSS. Para alcançar esse objetivos, a Comissão desenvolve as seguintes linhas de atuação:

1)      Produção de conhecimentos e informações sobre as relações entre os determinantes sociais e a situação de saúde, para a fundamentação de políticas e programas.
2)      Promoção, apoio, seguimento e avaliação de políticas, programas e intervenções governamentais e não governamentais realizadas em nível local regional e nacional.
3)      Desenvolvimento de ações de promoção e mobilização junto a diversos setores da sociedade civil, para a tomara de consciência sobre a importância de se estudar os DSS e sobre as possibilidades de atuação para que as iniquidades de saúde diminuam.
4)      A CNDSS mantém uma página institucional (www.determinates.fiocruz.br) com informações sobre as atividades que vem desenvolvendo e sobre publicações de interesse. E em breve será lançado o Portal sobre DSS que conterá dados, informações e conhecimentos sobre DSS existentes nos sistemas de informação e na literatura mundial e nacional. Também será um local para interação e discussão entre pesquisadores, profissionais de comunicação, entre outros.
      A CNDSS promete ser uma valiosa contribuição para o estudo dos determinantes sociais de saúde, para o avanço do processo de reforma sanitária brasileira e para a construção de uma sociedade mais humana e justa.

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