Ostra feliz não faz pérola – Rubem Alves
Postado por Beatriz Reis
Rubem
Alves é pura poesia ao falar, ainda que indiretamente, sobre crescimento pós-traumático.
E como hoje é dia de conteúdo criativo no Blog do GEPPS, recorremos a sua
grande sensibilidade e as suas lindas palavras para discutirmos um pouco mais
sobre o tema do mês.
Ostra
feliz não faz pérola.
“Ostras
são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos
gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, com arroz, paellas,
sopas. Sem defesas – são animais mansos –, seriam uma presa fácil dos
predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer
casas, conchas duras, dentro das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma
colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras
felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música
aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com
uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da
alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se
riam dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão...”. Não era depressão. Era
dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro da sua carne e doía, doía,
doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era
possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o
grão de areia lhe provocava, em virtude de suas aspereza, arestas e pontas,
bastava envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim,
enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da
dor que o grão de areia lhe causava. Um dia, passou por ali um pescador com o
seu barco. Lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi
pescada. O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma
deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes
bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e
sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra
sofredora fizera uma pérola. Ele a tomou e deu-a de presente para a sua esposa.
Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio
sobre O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música, Nietzsche
observou que os gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério.
Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um
céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das
razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida,
não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que
faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de
transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna
suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se
basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a
beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é
possível que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma
obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa...”
Referência:
Rubem, A. (2008). Ostra feliz não faz
pérola. São Paulo, SP: Planeta do
Brasil.
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