O conceito de saúde
Resenhado por Luana Santos
Segre,
M. & Ferraz, F. C. (1997). O conceito de saúde. Revista de Saúde Pública,.31(5),
p. 538-542.
O
texto se propõe a questionar a atual definição de saúde da Organização Mundial da
Saúde (OMS), para a qual saúde configura-se num “estado de perfeito bem-estar físico, mental e social”.
O questionamento é o alicerce do texto, que vai enlaçando as ideias a partir de
perguntas, o que acaba por tornar a discussão exatamente o que uma discussão
propõe: uma espécie de conversa entre escritor e leitor, que leva o leitor a se
perguntar (junto com o escritor e no decorrer da leitura) e não simplesmente
aceitar o que está escrito. Assim, ao mesmo tempo em que fundamentam suas
objeções à definição de saúde dada pela OMS, Segre & Ferraz delineiam
questões que podem – e devem – extrapolar o conteúdo escrito.
A
priori, conceituar saúde como perfeito bem-estar deveria permitir a mensuração
de tal bem-estar a fim de se obter um referencial do que seria ou não ‘estar
saudável’. Se tentamos definir ‘perfeição’ ou mesmo ‘bem-estar’ a partir de
referenciais externos e objetivos, corremos o risco de traduzi-los em algo não
passível de ser explicado num contexto que lhes dê sentido a partir da
linguagem e da experiência íntima do sujeito. Além disso, é complicado conceber
uma realidade sem obstáculos, as oscilações são parte do nosso cotidiano e são,
também, constitutivas da história de cada um, “o sofrimento que essas situações trazem, é comum e até desejável para o
homem sintonizado com o ambiente em que vive”. (pp. 539, ln. 37)
Segre
& Ferraz dão fluxo à discussão através das constatações de estudiosos:
Bergson distingue moral estática (valores, hábitos, o que de fato é estático
numa sociedade) e moral dinâmica (ao contrário do que é estático, é o que
resulta de um impulso criador, a ruptura e criação de novos valores); Freud
fala na impossibilidade da perfeita felicidade, visto que o ser humano teria
trocado uma parcela da sua liberdade pulsional por um pouco de segurança
conquanto sua renúncia lhe asseguraria certos benefícios (mas que não anulam o
‘mal-estar’ sempre presente entre indivíduo e civilização); Castoriadis se
contrapõe a Freud na medida em que o mesmo não conseguiu provar que o social se
originava na sexualidade, e completa ainda que não existiria sociedade sem leis,
visto que mesmo numa sociedade que se autodenomine sem leis predomina a lei do
mais forte (logo, onde Freud via natureza já se instaurava uma cultura porque
mesmo “indiretamente” já havia algo instituído). A discussão acerca do
‘perfeito bem-estar’ não se esgota, mas fica claro a impossibilidade de “qualitativar-se”
(sic.) formas estatísticas de saúde (mas não de doença, como veremos mais a
frente na discussão).
Por
outro lado, o termo ‘perfeito bem-estar’ pressupõe uma felicidade que sendo
perfeita subentende-se que seja também duradoura. Só que se está tudo bem
demais, por tempo demais, o indivíduo acaba por se sentir infeliz pela falta de
estímulos perigo-luta-recompensa, é a chamada ‘Síndrome da Felicidade’. Além
disso, alguém superadaptado mentalmente perde sua capacidade onírica e vai
amortecendo sua criatividade enquanto rebaixa o potencial para transformar a
realidade, esta é a denominada ‘Síndrome dos Normóticos ou Normopatas’. Logo, o
‘perfeito bem-estar’, ao ser alcançado, poderia então levar o indivíduo à
somatização.
Segre
& Ferraz criticam ainda a divisão que a definição da OMS parece fazer entre
mental, físico e social, quando já se sabe que tanto no processo de adoecimento
do sujeito, bem como na manutenção da sua saúde, esses fatores não são
passíveis de serem pensados como causais ou determinantes de forma isolada; mesmo
a somatização é um processo decorrente da interação e coação dos três. Assim,
afirmam que a partir dessa consciência pode ter surgido a ideia de “tratar o doente e não a doença, dando
margem, [...] ao sucesso das chamadas ‘formas não tradicionais de medicina’ por
visarem, essas técnicas, muito mais a afetividade do ‘sujeito’, do que a mera
expressão somática de sua turbulência emocional.”. (pp. 540, ln. 20)
Afinal,
deve-se ainda discutir o conceito de ‘qualidade de vida’ como algo intrínseco e
passível de avaliação apenas subjetiva. Cada sujeito é que conhece sua
realidade, então ele é o melhor juiz de uma ‘boa’ ou ‘má’ qualidade de sua
própria vida. Óbvio que para a configuração de políticas públicas necessita-se
de indicadores e é aqui que entram as estatísticas como fatores preponderantes.
A doença seria então uma estatística e o doente um diferente dos ‘normais’? Deve-se
ter cuidado, porque se pensarmos que sim abrimos margem a pensar que a
intervenção deve ser feita independente da vontade do doente, subjugando sua
autonomia, e, na tentativa de trazer-lhe de volta à saúde (entendida aqui como
ausência de doença) levá-lo ao mal-estar, um ciclo infindável onde saudável e
bem-estar não se encontram mesmo sendo ‘sinônimos’ na definição da OMS. Assim, os
autores afirmam: “O que é o doente? Um
ser humano diferente, que talvez tenha sua vida encurtada. O que é sofrimento?
É dor, inteiramente subjetiva, qualquer que seja sua origem.”. (pp. 541,
ln. 9)
Sintetizando
todo o caminho percorrido até aqui, pode-se dizer que ‘saúde’ não necessariamente
se mensura como a doença, assim como ‘perfeição’ e ‘bem-estar completo’ são
conceitos utópicos que, mesmo que haja uma forma de racionalizá-los, acabam por
se chocar. É importante levar em conta também que os fatores biopsicossociais
relacionados aos processos de saúde e doença não são passíveis de distinção e
devem ser entendidos como inter-relacionados. Além disso, a relação de poder estabelecida
geralmente entre médico e paciente dificulta o próprio entendimento do que seja
a doença, conquanto não permite a reciprocidade da troca de saberes e tira a
autonomia do paciente. E, enfim, a
qualidade de vida deve ser pensada e avaliada de forma subjetiva, uma vez que
só faz sentido pro indivíduo na sua própria realidade.
Entretanto,
o fim de toda essa discussão está longe de ser realmente um fim e esgotar as
possibilidades de racionalização acerca do conceito de saúde, prova disso é que
Segre & Ferraz encerram o texto deixando clara a margem para novas
discussões exteriores à leitura: “[...] saúde
é um estado de razoável harmonia entre o sujeito e a sua própria realidade?”.
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