'Não sou eu, é minha tireoide': o sofrimento de mulheres com alteração hormonal
Resenhado por Susana Santana
Hormônios
produzidos pela tireoide auxiliam no gasto de energia e aquecimento corporal e no
funcionamento adequado do cérebro, coração, músculos e outros órgãos. Alterações
na tireoide podem ocasionar vários sintomas. A reportagem traz relatos do
impacto dessa condição na vida de mulheres, resultando em sintomas físicos e psicológicos.
Embora alguns profissionais de saúde subestimem essa condição, há
endocrinologistas especialistas no assunto que defendem uma visão integrativa de saúde e alertam para
a importância do componente
emocional, da boa alimentação e dos bons hábitos de saúde no manejo clínico
desse quadro. A Psicologia da
Saúde pode contribuir com a investigação de fatores emocionais e
comportamentais que favorecem a adoção de hábitos saudáveis e pode fornecer
evidências sólidas para intervenções psicológicas melhor direcionadas para o
enfrentamento dos sintomas.
Fonte: https://www.bbc.com/portuguese/geral-61032916
"Eu
quero dormir com meu parceiro, mas minha libido diz que não. Quero acordar
cedo, fazer mil coisas, mas não consigo fazer nada como antes. Quero ler um
livro, mas uma névoa mental me impede. Quero ficar calma, mas algo me faz
gritar com o que está na minha frente, chutar, enfurecer. Quero emagrecer,
tento, mas não consigo. Quero ser feliz, tenho motivos, mas algo que
suga energia e alegria atrapalha. Quero sair dessa montanha russa de
sentimentos e emoções."
Laura,
Eirene e Loreta moram em países diferentes: Chile, Espanha e Croácia. Mas o
parágrafo anterior resume muito do que elas vivenciam nos últimos anos. Elas
também percorreram um longo caminho para encontrar o que buscavam.
"Quando
eu tinha 17 anos, comecei a ter sintomas malucos. Vertigem, um zumbido no
ouvido, eu me sentia muito mal. As pessoas achavam que era epilepsia. Depois de
vários exames, os médicos disseram que era a tireoide", diz Loreta à BBC
News Mundo, serviço em espanhol da BBC.
O
caso de Eirene começou com problemas estomacais em 2009. Ela fez endoscopias,
gastroscopias e colonoscopias… Um médico afirmou que ela estava inventando uma
doença - até que, meses depois, ela foi diagnosticada.
Laura
ouviu um médico dizer que ela estava gorda porque "os venezuelanos são
gordos pois comem muitas arepas". Ela chegou a consultar oito médicos para
encontrar um tratamento que não causasse um "choque hormonal."
As
três foram diagnosticadas com hipotireoidismo autoimune.
Uma
borboleta que controla sua energia
A
tireoide é uma glândula em forma de borboleta localizada no pescoço. Seu
trabalho é produzir hormônios essenciais para ajudar o corpo a usar energia,
manter-se aquecido e manter o cérebro, o coração, os músculos e outros órgãos
funcionando de maneira adequada.
"É
como a bateria do corpo. Se funciona muito ou pouco, há sintomas", disse a
endocrinologista Paloma Gil.
Se
ela funcionar mal, há o chamado hipotireoidismo. Segundo Gil, quem tem esse
problema costuma se sentir "como um brinquedo que fica sem bateria, que
cansa mais facilmente".
Se
a tireoide "funciona demais", ocorre o hipertireoidismo. A pessoa
pode se sentir "como se alguém tivesse lhe dado uma dose extra de cafeína,
acelerada", explica Gil.
Tanto
o hipotireoidismo quanto o hipertireoidismo têm muitos sintomas: queda de
cabelo, perda de energia, mudanças repentinas de humor, perda ou ganho de peso,
alterações na menstruação, na pele, esquecimento e confusão mental.
"O
problema é que os sintomas não são específicos", diz o médico Francisco
Javier Santamaría, membro da Sociedade Espanhola de Endocrinologia. Por
exemplo, no caso do hipotireoidismo "pode ser confundido com ter uma
fase ruim ou depressão".
O
hipotireoidismo é mais frequente e, segundo Santamaría, é subdiagnosticado.
"A estimativa é de que ele afete mais ou menos 10% da população. Metade
dessas pessoas não é diagnosticada", diz. É uma doença principalmente
feminina: "80% das pessoas com o problema na tireoide são mulheres",
afirma o médico.
'Não
somos um órgão separado de um corpo'
Um
tratamento muito comum é a levotiroxina, uma pílula que regula o desequilíbrio
da tireoide. "Uma vez que os hormônios estão bem, você pode ter uma vida
normal", explica Gil.
Mas
não é o caso de Loreta, Eirene e Laura, que, apesar de estarem sob tratamento,
continuam apresentando sintomas.
"Às
vezes fico deprimida, tudo me cansa muito. É difícil conciliar essa doença com
o ritmo de vida atual", reclama Loreta.
Já
Laura, uma pessoa muito ativa, às vezes trabalha deitada na cama.
"Tento
fazer tudo o que posso, sem pressão. Mas é muito difícil estar 100%",
acrescenta Eirene.
A
condição de Loreta piorou recentemente: ela tem nódulos e pode ter parte de sua
tireoide removida. "Meu médico disse que o problema causava sintomas, como
não conseguir me concentrar, não conseguir manter uma conversa. Eu sempre digo
'eu não sou assim: é minha tireoide."
"Normalmente
a maioria dos pacientes, 80 ou 90%, normaliza esses sintomas. Mas há casos em
que as pessoas não ficam 100% normais", diz Santamaría.
"Há
casos mais complexos. A maioria dos hipotireoidismos é do tipo autoimune e,
mesmo tomando remédios, essa autoimunidade continua afetando outros
órgãos", explica Santamaría.
Isso
significa que nosso sistema acaba atacando a si mesmo. "Você produz
anticorpos e ataca outras coisas, você vai contra o folículo piloso, dá
vitiligo, problemas no intestino..."
Além
disso, destaca Santamaría, o hormônio da tireoide afeta tudo, inclusive o
sistema nervoso: "Há muita labilidade emocional, irritação. Mesmo que você
tenha corrigido a tireoide, esses sintomas podem persistir", diz.
Em
suma, muitos pacientes não encontram respostas.
Um
caminho autodidata
As
três pacientes entrevistadas pela BBC News Mundo dizem que o problema é que não
há tantos médicos atualizados nem há um tratamento integrativo da tireoide em
seus países. "Tudo está relacionado, não somos um órgão separado do
corpo", diz Eirene.
Loreta,
Eirene e Laura sentiram que não estavam recebendo todas as respostas de que
precisavam. As três embarcaram em um caminho autodidata: procuraram livros,
vídeos e cursos, todos cheios de informações contraditórias e soluções baseadas
em tentativa e erro.
As
três contam com a presença de um médico particular que passa mais tempo com
elas e faz seus exames de rotina, algo que pode ser encarado como um
privilégio. E tanto Laura quanto Eirene foram a especialistas em medicina integrativa
para revisar todos os seus sintomas e tratá-los em conjunto.
Isabel
García é médica especialista em endocrinologia e nutrição com visão
integrativa. Ela garante que muitas pessoas chegam ao seu consultório cansadas
de procurar tratamentos, além de se sentirem "prejudicadas por médicos que
dizem que os sintomas não passam de mal estar."
"As
doenças têm uma causa, uma raiz. Muitas vezes não se resolvem com apenas um
comprimido. É preciso examinar a pessoa", diz García, lembrando que um dos
problemas é que nas faculdades de Medicina e nas consultas médicas "não se
fala em componente emocional ou a importância da alimentação e hábitos".
Um
pequeno guia
Os
três especialistas consultados pela reportagem alertam que, em nenhum caso,
medicamentos ou suplementos devem ser tomados sem acompanhamento médico.
García
promove a eliminação de toxinas em seu tratamento, que pode variar desde
algumas obturações dentárias que contêm mercúrio até a substituição de
recipientes de plástico por vidro ou sabonetes líquidos por sabonete em barra.
São mudanças que nem sempre estão ao alcance de todos por causa do ritmo de
vida, condições econômicas e contexto social.
Mas
também propõe mudanças muito mais acessíveis na dieta, como eliminar açúcar e
alimentos ultraprocessados e tudo o que considera inflamatório, como glúten
ou leite de vaca. Também orienta banhos de sol, essenciais para a vitamina D, e
exercícios. "Mas os exercícios devem ser feitos com moderação, porque eles
são algo que estressa muito o corpo".
Devido
ao tipo de mulheres que vão à sua consulta - "de meia idade, com uma forte
carga mental e emocional" -, García recomenda pequenos gestos diários:
dormir sem o celular ao lado, redução do consumo de internet, meditação,
terapia, além de um melhor gerenciamento das emoções.
"Ao
mudar parte da dieta e diminuir o estresse, as mudanças são
espetaculares", observa García.
Conheça-se
melhor e tenha compaixão
Eirene,
Loreta e Laura concordam em um processo que descrevem como essencial: o
autoconhecimento.
"É
fundamental saber quando algo está me incomodando e quando são os
hormônios", diz Laura. "Conheça-se, escreva toda vez que sentir uma
mudança de humor, aprenda com a doença."
Também
é fundamental buscar redes de apoio e explicar o problema para as pessoas mais
próximas. "Há muito mal-entendido. Você é visto como preguiçoso, o
esquisito que come esquisito, que não bebe álcool", explica Eirene, que
modificou radicalmente sua dieta e estilo de vida, eliminando todas as toxinas
possíveis e incluindo um anti-inflamatório na dieta.
Laura
está grata por seu hipotireoidismo ter surgido para lhe dar a oportunidade de
olhar para dentro dela mesma. E aconselha: "Esta é uma doença silenciosa,
mas quem grita com você é o seu corpo. Ouça-o, abrace-o, seja compreensivo
consigo mesmo e, a chave, tenha autocompaixão".
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