As vicissitudes dos Conceitos de Normal e Patológico: Relendo Canguilhem

Resenhado por Laís Almeida

Dias, D.A.S. e Moreira, J.O. (2011). As vicissitudes dos conceitos de normal e patológico: relendo Canguilhem. Revista Psicologia & Saúde, 3, n.1, 77-85.

Esse artigo oferece uma reflexão sobre os conceitos de normal e patológico a partir do clássico “O Normal e o Patológico” de Canguilhem, obra que busca discutir filosoficamente essas concepções em diferentes momentos históricos a partir de diversos autores, dentre eles médicos e filósofos. Essa reflexão tem como intuito apresentar as diferentes concepções de saúde e doença ao longo da história para defender a ideia de que os complexos conceitos não são determinados apenas por questões científicas, e sim políticas, históricas, religiosas, sociais e econômicas. É necessário destacar que normal e patológico são conceitos que variam de acordo com as mudanças de objetivos, pressupostos e fins da prática médica, mas que talvez para a prática psicológica isso funcione da mesma forma, sendo de importância fundamental para a prática de cada campo científico. O texto busca estabelecer uma ponto entre o que é normal para as ciências médicas, e o que é normal para a psicologia, com o objetivo de clarear elementos que o saber psicológico ainda necessita desenvolver e abordar.
Ao longo do texto é possível perceber as diferenças referentes às relações de doença e saúde, já que na Grécia Antiga a doença é vista como algo dinâmico e que intenciona a cura, não existindo a necessidade de uma brusca intervenção externa. Nela o poder de cura é orgânico, o organismo monta as estratégias necessárias para conquistar o equilíbrio e, consequentemente, a saúde. Era normal que o organismo ficasse doente, pois só assim ele poderia estabelecer novas formas de se tornar novamente saudável. Já na concepção egípcia, a doença é externa ao organismo, foi adquirida por meio de possessão demoníaca ou por parasitas e recuperar a saúde implica em expulsar aquilo que causou a doença, através de magia. Essa visão também foi adotada durante a Idade Média, com a diferença que lá a doença foi associada ao pecado e a saúde à salvação, ou seja, a doença continua sendo um processo extrínseco ao indivíduo, mas a culpa é transferida para a própria pessoa. Doença e saúde, aqui, se diferem por um viés qualitativo, em que a primeira nada mais é que a expressão do pecado, do mal encarnado que se como punição ao erro. E a última funciona como uma recompensa pelo caminho “corretamente” seguido.
Com o início da perspectiva moderna, Comte e Claude Bernard iniciam o movimento de retorno a uma concepção de doença enquanto algo intrínseco, sem desconsiderar a possibilidade de infecção por germes. Pasteur havia comprovado a existência de microorganismos através de experimentos científicos e descobriu que quando eles invadem um corpo, podem causar doenças. Comte não apresenta uma definição e baseia sua teoria em Broussais, o qual trabalha com a ideia de que a excitação é fundamental para a vida, defendendo que “o homem só existe pela excitação exercida sobre seus órgãos pelos meios nos quais é obrigado a viver”. É por meio dessas excitações que os órgãos reagem às diversas necessidades do organismo e a patologia seria o desvio do estado normal percorrido por esses estímulos. O normal, de Broussais na análise de Canguilhem, seria algo valorativo, um conceito normativo ligado a algum valor, que representa o funcionamento dos órgãos com toda a regularidade e uniformidade de que são capazes. O patológico, por sua vez, se caracteriza por ser uma variação da normalidade fisiológica.
O texto aponta que a prática médica passou por três facetas diferentes, até chegar ao que Broussais propõe: 1) a medicina era fundamentalmente classificatória; 2) o surgimento da anatomia possibilitou a localização da doença no corpo e 3) resgate da medicina classificatória e união dela à anatomo-clínica.
Na visão de Canguilhem, foi a patologia que criou a fisiologia, pois o normal só começou a ser estudado por causa do anormal. De acordo com sua concepção, o normal é a capacidade que o corpo tem de obedecer a certas normas que ordenam e organizam a execução das mais diversas funções. É uma forma de funcionamento que rege o organismo, que possui constantes responsáveis por reger e regular o funcionamento de certos órgãos. Já a doença, portanto é a incapacidade do corpo em se colocar de maneira normativa, ela é um “abalo e ameaça à existência”. O que se demonstra através disso é que a doença implica certa rigidez, pois o funcionamento da doença dificulta a reação aos desafios que a realidade impõe, ao mesmo tempo, ela se apresenta como uma renovação de algo que não estava respondendo de maneira satisfatória. A saúde pode ser caracterizada, então, como uma ampla gama de possibilidades do organismo frente às mais diversas situações que o ambiente coloca. Viver remete a um posicionamento que oscila entre estabilidade e transformação. Essa ideia desdobra-se em duas constantes: de valor propulsivo (relacionada às normas que podem vir a ser superadas) e de valor repulsivo (se esforçam para se manter sem a influência de qualquer advento). As constantes de valor propulsivo assemelham-se à saúde e as constantes de valor repulsivo às doenças. A patologia originou-se do apelo ao médico por parte do doente, sua origem é subjetiva e não objetiva. Cada patologia se desenvolve a sua maneira, portanto, o conhecimento sobre uma patologia não garante a universalidade da intervenção.
Na obra de Canguilhem não há diferenciação entre as doenças orgânicas e as psicológicas, já que o autor considera que o organismo responde integralmente a um estado patológico, de forma que diante da patologia orgânica, adoece o todo. Outro fator que reforça isso é o critério subjetivo da doença, no sentido que o enfermo precisa ter consciência de sua própria enfermidade para que se possa definir o que é uma doença. A saúde que Canguilhem trata estrutura-se em termos filosóficos, através de um ponto de vista relacional. Ele trata um paciente que sofre de doença mental como um alienado, um ser inteiramente singular, e afirma que a doença não esclarece o fenômeno da alienação. Pois esse paciente não tem a capacidade de autocrítica, critério fundamental para a caracterização de doença sob o ponto de vista desse autor. O artigo levanta a ideia de que talvez a doença psicológica, como é mostrada aqui, exclua da discussão o sujeito cartesiano, pelo fato da sua razão encontrar-se prejudicada. E que Canguilhem parece seguir uma tendência histórica de silenciar a loucura. A autocrítica é um critério que exige cautela no que diz respeito aos doentes mentais, mas, em contrapartida, quando ele relata que a saúde relaciona-se à capacidade de se lidar com as dificuldades do ambiente e a própria loucura pode ser entendida como uma tentativa de resposta a um ambiente hostil. Contudo, o texto conclui que de qualquer forma, para Canguilhem toda doença refere-se a um doente, e esse doente deve ser levado em conta no tratamento.
Além do que foi exposto, pode ser possível encontrar uma diferenciação entre doenças orgânicas e doenças psicológicas na terapêutica, pois elas se definem através dos instrumentos que podem vir a auxiliar no tratamento. Ambas causam sofrimento e ambas são subjetivas, a diferença é que o sofrimento orgânico é objetivável e pode-se atuar sobre o corpo para que o tratamento ocorra, ao contrário do sofrimento psicológico.  Com relação a este, é difícil localizar o tipo de cura que se busca, porque o modelo psíquico não funciona de acordo com a fisiologia e talvez a resposta esteja no próprio paciente. Cada paciente pode apresentar suas próprias formas de lidar com o seu sofrimento e para lidar com isso e utilizar em favor do tratamento, é preciso que estejamos bem preparados. A reflexão de Canguilhem, no entanto, não é legitimada pela prática médica, possivelmente por seu caráter filosófico que nem sempre tem respaldo na prática. No caso da Psicologia, que nasceu com a pretensão de se tornar uma ciência positivista, teve como definição de normalidade o uso da psicometria, vinculada a uma diferenciação quantitativa. Porém, com o desenvolvimento da Psicologia e o surgimento de suas ramificações, o conhecimento passou a ser cada vez mais multifacetado e cada área possui suas próprias definições sobre o que é normal e o que é patológico.
O artigo é bastante interessante ao passo que realiza com sucesso a problematização dos conceitos de normal e patológico, nos quais cada sujeito da sociedade é encaixado e a partir disso inúmeras consequências lhe são impostas. O texto é recomendado não só para médicos e psicólogos, como para qualquer pessoa que se interesse pelo tema e possa levar dessa discussão uma inspiração para a crítica e reflexão diária. 

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