Resiliência, palavra da moda utilizada por políticos, esportistas e gurus da autoajuda
Postado
por Edryenne Matos
Resiliência é
um termo que tem a sua origem na Física e atualmente também é aplicado às
ciências sociais e humanas. Ela é designada como a capacidade humana de superar
traumas e feridas, sendo considerada como uma atitude vital positiva que
estimula a reparação dos danos sofridos. A Psicologia Positiva estuda esse construto
em razão da sua relação com os aspectos positivos da experiência humana. Além
dessa área, políticos, empresários, militares e até mesmo gurus, também se
apropriaram desta terminologia, utilizando-a muitas vezes de maneira deturpada,
alterando assim, o seu real significado e importância para a experiência
humana. Compreende-se que o estudo desse construto também está diretamente
relacionado à Psicologia da Saúde, sendo possível uma interface entre as duas
áreas do conhecimento.
Fonte:
http://brasil.elpais.com/brasil/2016/03/22/ciencia/1458660245_345067.html
Tempos de
resiliência
É a palavra da moda empregada por políticos,
esportistas e gurus da autoajuda.
Recentemente, a Real Academia Espanhola definiu
resiliência como a “capacidade de adaptação de um ser vivo diante de um agente
perturbador ou estado ou situação adversa”. Por experiência própria, como
psiquiatra e terapeuta, testemunhei não só a dor e os transtornos provocados
pelos traumas, como também a capacidade e a coragem das vítimas de resistir e
fazer o impossível para que essas experiências não determinem suas vidas.
Resiliência designa a capacidade humana de superar
traumas e feridas. Não é uma receita para a felicidade, mas uma atitude vital
positiva que estimula a reparar os danos sofridos. As experiências de órfãos,
crianças maltratadas ou abandonadas; de mulheres que sofreram com a violência
machista de seus maridos; de vítimas de guerras, de tortura, de catástrofes
naturais, ou de doenças permitiram constatar que muitas pessoas não se prendem
a seus traumas a vida toda, mas contam com esse antídoto. Só precisam encontrar
ambientes interpessoais e sociais que as ajudem a conhecer o valor terapêutico
da solidariedade e do amor, porque são reconhecidos como afetados por
experiências injustas e degradantes. Porque a resiliência dificilmente pode
brotar na solidão. A confiança e a solidariedade de outras pessoas é condição
imprescindível para que qualquer pessoa ferida por uma experiência traumática
recupere a confiança em si mesma e na condição humana.
O termo tem sua origem na Física. É a capacidade que
um material tem de resistir a um impacto e recuperar sua forma original. Uma
bola de borracha é um objeto resiliente, ao contrário do vidro de uma janela
que, diante de um impacto, se estilhaça e não recupera sua forma anterior. Este
fenômeno físico serviu de metáfora para o ser humano, que pode receber o
impacto de um trauma e seguir adiante sem se destruir. Conheci o fenômeno da
resiliência na própria carne quando, jovem médico no Chile, fui detido, preso e
torturado depois do golpe militar de Pinochet. Mas o que me impressiona quando
recordo meu cativeiro é a capacidade de criar laços afetivos e estratégias
solidárias com meus companheiros de cativeiro, de enfrentar o horror cotidiano
das sessões de tortura e a possibilidade de ser assassinado impunemente. Um
grupo de prisioneiros – eu, outro médico, um professor do ensino médio, um
pastor luterano e um padre católico – fomos facilitadores dessas respostas.
Hoje em dia, a quem desempenha esse papel dá-se o nome de “tutor da
resiliência”.
Acredito que, em parte, devo minha sobrevivência
mental a esse compromisso de apoiar e trabalhar para manter a esperança no
grupo de detentos, a meus empenhos em atendê-los como médico. Fui capaz disso
graças à força do afeto que tinha recebido em minha família e em meu bairro
durante minha infância e adolescência. Somou-se minha capacidade de me indignar
e me rebelar contra os atos violentos dos militares, que prenderam, torturaram
e mataram civis indefesos, amigos e colegas de trabalho. Naquela altura, eu não
sabia que ao resistir desse modo iniciava meu próprio processo de remendar meu
eu estilhaçado pelos traumas. Começava assim a construir minha própria
resiliência.
Foi graças à leitura dos livros de Boris Cyrulnik
que me reconheci como uma pessoa resiliente que tinha transformado a dor e os
sofrimentos em ações construtivas.
Minha
“obsessão”, desde que me colocaram em liberdade, foi transformar minhas dores
em solidariedade efetiva, e participei de um projeto para reparar o dano traumático
de outras pessoas. Em 1974, o Governo belga criou um programa de acolhida para
os refugiados latino-americanos com bolsas de pós-graduação, e me especializei
na Neuropsiquiatria, depois em Psicoterapia, Terapia familiar e Psiquiatria
infantil. Em 2002, depois de conhecer Cyrulnik, tornei-me um ativista para a
promoção da resiliência, não somente de refugiados e solicitantes de asilo,
como também de crianças afetadas pela violência dos adultos, em forma de
maus-tratos, assim como na resiliência de mulheres e seus filhos vítimas da
violência machista. Na atualidade, existe o risco de o conceito de resiliência
se desvirtuar ao ficar na moda. Por exemplo, alguns políticos e gestores de
políticas sociais o usam para minimizar o dano e justificar os cortes nas
políticas sociais.
Nas empresas multinacionais, os seminários sobre as
capacidades resilientes estão sendo usados para apoiar o tópico de “você pode”,
embora as condições trabalhistas se degradem a cada dia. No discurso midiático,
apresenta-se associado ao sucesso de esportistas de elite, cantores da moda, ou
competidores do MasterChef. Também os militares se apropriaram do conceito e o
corromperam. Quem provoca ou participa das guerras se interessa pelo tema para
motivar a força destrutiva de suas tropas e banalizar o impacto de suas ações
na população civil e em seus próprios soldados.
Isto
contradiz as pesquisas sobre a resiliência, que mostram que ela é um produto
social e sempre interpessoal.
Os contextos interpessoais resilientes são afetuosos
(biologia do amor), facilitam a consciência de ter sido afetado por injustiças
– venham elas da natureza (como as catástrofes naturais), da opressão, da
violência política, de gênero, dos maus-tratos infantis –, o que permite
empoderar-se para seguir em frente. A solidariedade empática com os afetados, a
expressão artística, o humor e a espiritualidade também são fatores
resilientes.
Nesse sentido, é pouco provável que se desenvolva
resiliência nos milhares de refugiados que se encontram às portas da Europa: as
imagens comovedoras de mulheres, crianças, muitas delas bebês, e idosos
refugiados sírios são exemplos de contextos antirresilientes. Se a resiliência
individual familiar ou social é filha do amor e da solidariedade, não se pode
desenvolver nessa enorme população de refugiados, afetada pela indiferença,
pela rejeição e pelo poder patriarcal dos governantes europeus.
Resta-nos
a esperança de que algumas faíscas desse fenômeno se produzam pela ação
solidária da sociedade civil, que traz esperança para que alguns dos afetados
possam resiliar essas circunstâncias dramáticas.
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